sexta-feira, 6 de junho de 2014

A História da família Mixtar.

"Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia..."






           Naquela noite fazia-se um grande temporal.O telhado da casa parecia que se partiria em pedaços como os pingos da chuva lá fora.Nada comum, mesmo para uma cidade onde quase nunca havia o calor do sol.
           Liezel Mixtar completava naquele dia os tão sonhados dezoito anos mas que não haviam sido comemorados porque as economias da família estavam empenhadas no casamento de Merline, sua irmã mais velha.
           O jantar já havia terminado e a senhora Mixtar colocava os pequenos gêmeos Marco e Quiara para dormir enquanto Liezel acendia a lareira na sala principal para aquecer o pai e os outros três irmãos que passariam os últimos quinze dias daquele Março, com suas esposas e marido, todos nos preparativos do casório.Liezel, mesmo sendo a mais nova dentre os cinco irmãos, não conseguira a atenção, a admiração ou o carinho que gostaria de ter por parte de seus pais.
           Se sentia por todos abandonada, não compreendia os motivos pelos quais a família a desprezava então decidira ir embora.
          Cuidaria de sua vida por conta própria e nunca mais voltaria e nem olharia para trás.
Enquanto todos conversavam entretidos em volta da lareira, a menina foi para o quarto começar os preparativos para a grande fuga.Levaria somente o imprescindível: o cofre, a mochila e e suas meias da sorte.
          Quando as luzes da casa se apagaram, Liezel levantara da cama, onde pusera em seu lugar dois travesseiros para enganar a mãe, caso esta lhe fizesse a conhecida "visita noturna ", um ritual que a senhora Mixtar sempre fazia nos quartos dos  filhos antes de dormir.Depois de checar todos os seus utensílios novamente, pôs-se a descer as escadas em passos de plumas até a saída dos fundos, sem perceber que Smil, o gato de estimação a observava desconfiado.
         Quando Liezel achou o trinco da porta, quase sem enxergar naquela penumbra, e ia girando a chave para finalmente sair, o danado do gato soltou um alto miado que a assustou tanto que fez com que as chaves escorregassem de suas mãos trêmulas e caíssem no chão com tamanho estardalhaço. Com o coração martelando no peito a menina ficou esperando a reação de alguém que despertasse com tal barulho, mas nada aconteceu.Ninguém acordou.
          Liezel aproveitou a sorte e continuou, abriu a porta e saiu apressadamente para a rua, caminhando depressa no silêncio e na escuridão da madrugada. A estação da rodoviária ficava ali próximo.Ao chegar, Liezel embarcou no primeiro ônibus interestadual que vira se aproximar, nem se preocupou em saber o percurso, apenas entrou, sentou e chorou até adormecer.
           Sua consciência lhe levava a um lugar diferente...Estava sentada em frente ao mar, só a paz, as gaivotas e o vento com cheiro de sal ...
         - Passe a mochila!
            Um susto.
            Era um assalto.
            Levaram tudo.
            Agora Liezel estava só, sem documentos e sem dinheiro. Não sabia para onde ir, não sabia se voltaria para seus pais, que a essa hora ainda nem deram pela sua falta, pensava.
            Não queria voltar.
            Seguiria em frente, daria um jeito, mas não seria humilhada por voltar frustrada e roubada.
            Desceu na rodoviária, sentou no banco e pôs-se a pensar. O que faria em meio àquela multidão? 
           Abaixou a cabeça e chorou desesperadamente.
           Uma pessoa tocou em seu ombro, Liezel se afastou bruscamente do contato estranho e olhou apavorada o dono de tal atrevimento.
Era um rapaz muito simpático que lhe perguntava o que  havia acontecido, porque chorava tanto. Liezel não conseguia responder. Estava nervosa, amedrontada e faminta.
          O homem lhe ofereceu um café e a menina aceitou. Não poderia negar.O homem nada mais perguntou, apenas observava aquele serzinho amedrontado à sua frente. Encantado.
Liezel era uma moça linda, tinha pele morena, olhos cor de mel, espessos cabelos negros e cacheados que  lhe cobriam as costas. 
          Logo que a vira Carlos Ravier D'oliva soubera que era uma moça de família. 
          Liezel jamais enxergara tal beleza em si, muito pelo contrário, sempre vivera se boicotando e não gostava que lhe elogiassem. Sofria com uma dor e problemas que só existiam em sua cabeça : baixa auto estima.
          Depois de devorar seu café da manhã, Liezel criou coragem de contar sua empreitada para aquele estranho que afinal de contas lhe matara a fome. Enquanto falava, observava as feições de Carlos. Tinha olhos bem arredondados que ora eram verdes ora castanhos, não conseguia definir; se vestia como um provinciano mas a conversa era jovial, aparentava ser jovem como ela, cabelos loiros cortados baixo e era um rapaz alto.
         Não o achou lindo como qualquer garota acharia, apenas simpático.
         Carlos ouvira tudo com certo brilho nos olhos, precisava de uma funcionária em sua adega, um pequeno negócio da família e poderia perfeitamente encaixar aquela moça.
Assim que ouviu a proposta Liezel ficou perplexa, não acreditava que a sorte lhe estivesse sendo tão gentil. Aceitara sem pestanejar.
         Carlos prometera que no dia seguinte providenciaria a documentação da jovem, que lhe compraria roupas e lhe cederia o quarto dos fundos na fazenda onde morava com seus pais.
         Liezel não era do tipo de pessoa que acreditava na bondade das outras, não conseguia acreditar tampouco nas circunstâncias que a tinham guiado até aquela "boa alma" , por isso preferiu manter a guarda, não confiava por completo mas se deixou levar.
Assim seguiram os dias, Liezel aprendera a trabalhar com bebidas, mantinha uma boa relação com a família D'Oliva, mas achou por bem manter uma distância respeitável, uma vez que percebera a paixão que Carlos nutria por ela.
        Cinco anos se passaram. Liezel se tornara a melhor funcionária da adega D'oliva e resolvera cursar em uma faculdade para se tornar somelier. Depois que se formou resolveu voltar à sua casa para tentar curar as feriadas que abrira no passado. Se arrependera de ter saído sem conversar com seus pais, precisava voltar e colocar as coisas no lugar outra vez.
        Ao chegar à casa, não havia ninguém, bateu na porta vizinha e perguntou pela família Mixtar. Descobrira que sua mãe falecera, na noite de sua fuga, de ataque cardíaco.
      -A senhora Mixtar fora visitar a filha mais nova naquela noite, para desejar-lhe feliz aniversário e dar-lhe um presente. quando entrou no quarto e procurou-a, encontrou as almofadas na cama no lugar da garota.
Logo soube que o pior viria a acontecer, assim, com o nervosismo e a pressão causados pelo susto ela passou mal, chamaram a ambulância, mas esta demorou muito e a senhora Mixtar não resistira.
       -A polícia desistira das buscas quando encontraram a mochila de Liezel boiando nas águas de um córrego ali perto, deram-na como morta para a  família.-- dizia a vizinha,assídua em contar causos.
     - O casamento de Merline Mixtar havia sido adiado porque ela estava em estado de choque emocional que desencadeara uma depressão profunda decorrente da morte da mãe e da irmã. A casa havia sido vendida e o resto da família tinha viajado para o sul tentando esquecer as marcas do passado.
      Eva, a vizinha, era nova naquela cidade e por isso não conhecia Liezel, apenas estava reproduzindo a história que ouvira falar sobre aquela pobre família.
      Liezel estava arrasada, nunca imaginara que uma atitude sua, mal articulada, pudesse desencadear a desgraça  de sua família. Logo ela que pensara ser a menos amada. 
     Jamais teria coragem de procurar seus outros irmãos ou mesmo seu pai,o que diria para que pudessem perdoá-la? Não havia saída.
      Tudo estava arruinado.Por ela, por culpa dela.
      Dor, remorso e culpa lhe faziam chorar, inconsolavelmente.
      Gostaria que tudo não passasse de um pesadelo do qual ela pudesse despertar e encontrar sua mãe ali,no quarto ao lado com seu pai para que pudesse abraçá-los.
      Não conseguia enxergar as ruas direito, apenas uma névoa de passado misturada ás lágrimas que corriam por sua face. Dirigia em alta velocidade sem se dar conta dos perigos.
      O sinal fechou e ela seguiu.
      Bateu de frente na lateral de um caminhão, no cruzamento.
      O silêncio e a paz inundaram seu ser, caía num imenso mar de nuvens.
      A sala do hospital estava com um clima pesado.Carlos só sabia choramingar e sussurrar preces para que Liezel suportasse ás cirurgias cranianas com sucesso.
       - Te amo minha querida, por favor, não me abandone, prefiro que me leves contigo.
     Segurava a mão da amada e chorava, já quase sem esperanças.
     O doutor havia sido claro quanto aos riscos: tudo ou nada.
      Liezel ouvia de longe um choramingar, abrira os olhos com dificuldade e vira um homem segurando sua mão com olhos marejados.              
     Não o reconhecia.
     Mas aqueles olhos ora verdes, ora castanhos que lhe observavam com tanta preocupação, ela tinha certeza que já havia visto.
      Liezel Mixtar sofrera ferimentos cranianos severos  e por conta disso perdera quase oitenta por cento da memória afetiva.
     Carlos jamais saberia a verdade sobre aquela moça que tanto amava e tampouco Liezel  lembraria seu passado.Uma ironia ou um presente do destino.